Amanheceu e eu estava atrasada. Então sentei na cama e fiquei ali, parada, com os dedos deslizando entre os cabelos. A sensação estranha, a dor, e mesmo assim eu precisava daquilo. O corte queimava mas dava um alívio doentio. Eu via o tempo passando e não conseguia fazer nada além de ficar ali com a minha loucura. Enfim me levantei e lavei as mãos, sujas de sangue, pra que ninguém percebesse. Nunca quis que ninguém soubesse que tem algo muito errado comigo. O cheiro do sangue continuava ardendo nas minhas narinas, e por mais que eu lavasse ele não sairia. O vermelho dele continuava passando na minha mente, por mais que eu tentasse não fechar os olhos. A dor, pulsante, continuava ali enquanto eu, cuidadosamente, penteava os cabelos. Estrategicamente usando os fios para me livrar dos questionamentos alheios, fui ver mais um dia passar em câmera lenta.
E eu convivo com a dor todos os dias, o dia todo. Eu me sinto mal. Me sinto culpada, com medo e envergonhada. Mas amanhã será tudo igual.
Sim, eu sonho todos os dias em ser uma pessoa normal.
Não venha com suas lições de moral e seu blá blá blá. Só eu sei o que sinto e a luta que enfrento todos os dias. Não julgue se você não compreende.

E eu então percebi que tinha medo de andar na rua. Sim, medo que as pessoas me olhem, medo de olhar pra elas. Medo de passar por conhecidos e eles se chatearem por eu não cumprimentá-los. Eles nunca iriam entender que eu não consigo olhar em volta. Não consigo saber o que fazer.  Sempre me vejo dando passos desengonçados e olhando pro lado errado. Sempre vejo o que nem deve existir. Sempre acho que estão me olhando, me criticando. Aliás, descobri que tenho medo das críticas também.  Por isso comecei me recusar a fazer qualquer coisa que envolva opiniões de outra pessoa. Por isso quis largar o emprego, desisti dos trabalhos de grupo e das apresentações orais. Por isso quis me trancar em casa e não sair nunca mais. E então descobri que não sirvo pra mais nada, não por não ser capaz, mas por ter me deixado apodrecer por dentro. Eu odeio o público, mas detesto minha própria companhia. Será que ainda restou algo que eu goste de fazer?

É isso aí, minha filha. Bem vinda ao mundo que todos falavam e você não compreendia. É, eu sei, você acreditou que fosse diferente, que tinha tido sorte, mas apenas passou um pouco mais de tempo na sua bolha. Tudo é exatamente como te falaram, não é? Você cresceu. E tá doendo, não é? E isso é só o começo...
Você tá começando a conhecer o que chamam de vida. Mais conhecida como complicação. E pode ter certeza, todas as coisas de ruim que você fez, por mais brandas que sejam, você vai pagar, e com juros altos. Vai pagar até pelo que não fez. É tudo clichê, não é? Tudo que faz, fala, ouve e vive é exatamente tudo que você sempre ouviu de todas as outras histórias. Te vira, a vida é isso aí, a bomba tá na sua mão, e vai explodir.