Eu só queria aquele menino de volta. Aquele do sorriso torto, que parecia tão meu. Queria acordar de manhã e ficar olhando ele dormir, sem achar que ele ia fugir rápido quando acordasse. A turbulência me doeu tanto, que tudo que eu queria era a paz de beijar aquele sorriso e saber que ele seria só meu. Queria tocar o corpo dele sabendo que ele me escolheu. O cheiro dele impregnado no meu travesseiro. As mãos na minha cintura, me pressionando forte contra a parede. Queria colecionar momentos, fugir no meio da tarde, ou dançar a noite toda olhando pra ele. Queria, por um dia, o celular desligado, um momento só nosso, a ausência de tanta gente pra me assombrar. Eu só queria poder acreditar de novo que tudo ia dar certo, poder escolher todos os dias amar aquele jeito moleque de ser. 

Quando chego, os cachorros me recebem com festa. Enquanto me recepcionam com doces lambidas nos pés, do portão já avisto minha mãe com uma colher de pau na mão, e sinto o cheiro do tempeiro único que ela usa. Amor.
Enfim, casa. O cheiro das frutas sobre a mesa, os passarinhos, o sofá, a tv, as cores dos livros na estante. Pessoas. Mais que isso, pessoas que me amam. No calor do meio dia, meu irmão deitado sob o cobertor; corro e pulo sobre ele e ouço apenas um resmungo. 'Bom dia, pequenachita', sussurro em tom de implicância. 'Bom dia', ele responde num sorriso sem graça de quem teve o sono interrompido. Rolo mais uma vez sobre suas costas, então enfim arranco uma risada. Mamãe abandona as panelas e me dá um beijo caloroso, a palavra "filha" me dá um alívio inexplicável. 'Tudo bem?', ela pergunta. 'Ótima', eu penso. Sim, respondo com os olhos. Papai me mostra então uma função nova naquele smartphone da moda, e rimos juntos das fotos engraçadas que ele encontrou.
Os cachorros passam correndo pela sala, e rimos todos da molecagem que eles transmitem. Sentamos os quatro a mesa, e mais os dois animais moleques aos nossos pés. Sorrisos, fofocas, discussões.
A casa toda tem um não-sei-o-quê de paz, uma áurea de conforto e proteção que me envolve e me tira, por um momento, todas as angústias que me sobrecarregam. E descubro que não é apenas uma casa. É um lar. É o meu lar. A coisa mais minha e mais linda que eu tenho na vida. 
Me recosto no sofá, e sei que estou segura, mais do que em qualquer outro lugar do mundo.

Ele estragou a pessoa que eu era. Eu deixei de ser inocente quando deixei de acreditar na magia dos olhares - por descobrir que as pessoas mentem com os olhos também - .
Ele estragou todas as outras histórias, me fez deixar de acreditar em tudo que vivi.
Como foi que eu deixei ele influenciar tanto assim a minha vida?


Há muito tempo eu já não via mais em você aquele sorriso torto. O seu sorriso era agora diferente, e não me arrebatava mais. Era um sorriso carregado de más lembranças.
Há meses eu não enxergava aquele brilho nos seus olhos, talvez a minha visão esteja distorcida agora pela raiva, ou talvez esteve distorcida por todo o tempo pela paixão.
Eu não sabia mais ser doce com você. O que você me deu esse tempo todo era muito amargo e eu fiquei amarga também.
Então você partiu, e das nossas lembranças só permaneceram as ruins; As boas foram integralmente nubladas por todo o mal que você me fez.
E agora só tento me desintoxicar de todo o veneno que ficou em mim. 

Eu quero me desligar dessa vida, desses lugares, dessas pessoas, desses costumes. Quero me desligar dos sentimentos e das vontades e dar lugar a novas sensações.


Eu não consigo mais me lembrar. Tento recriar na minha cabeça as cenas de nós dois, e aparece simplesmente um vazio. Não me recordo de como eram os momentos em que estávamos sozinhos. Não me lembro dos motivos que nos faziam discutir. Não me lembro se a gente sorria um pro outro, nem sei mais se a gente conversava sobre assuntos corriqueiros.
No seu lugar, ficou apenas uma enorme mancha em branco. Lembranças esquecidas no tempo, tempo perdido. Eu não sei mais como eram os nossos beijos, e, meu Deus, eu não consigo me lembrar dos seus olhos.