Era o dia seguinte. O dia depois do sonho ruim, que durou anos. O dia seguinte da minha saída da sala de eterna espera, da desistência de ser atendida. Era o dia depois de amanhã, depois do amanhã que nunca chegava. Acordei nesse dia, simples assim. Com o sol entrando pela janela e clareando todos os medos embaixo da cama, com o vento levando toda a sujeira embaixo do tapete. Era o dia do recomeço, do começo do fim e do resto da minha vida. Da minha paz. Dormi, como sempre, esperando que tudo passasse e nessa noite realmente passou. Acordei sem sangue, sem curativo, com uma pequena cicatriz. Pude levantar sem algemas, lavar o rosto sem maquiagem, olhar pra trás sem sentir dor. Era data de faxina, apagar fotos, jogar fora cartas, me livrar de qualquer prova que pudesse ser usada contra mim num dia banal de saudade. Exclui telefones, fiz questão de esquecer datas. Não tinha pontada no estômago, preocupação, agonia, arrependimento. Tava tão vazia, que não sai andando, flutuei. Bom dia, mundo. E os olhos doeram, como quem passa anos numa caverna escura e, de repente, tem contato com a luz. Mas logo se acostumaram, com um alívio de quem volta a ver. Como quem volta a reparar nas flores. Flores que você nunca me deu. Lembro e sorrio, pensando no teu “Te ligo!” e em como isso nunca aconteceu. Gangorra me enjoa e pra não vomitar, te deixo sozinho, brincando de castigo com alguém nunca melhor do que eu. Vê se não fica triste, porque toda a solidão que existe nunca vai superar todo o tempo que você me enlouqueceu. Fica bem, fica sem, porque acabou o jogo, camisa de força pra mim já virou roupa básica e decorei todas as suas desculpas clássicas pra me deixar esperando até o fim. Sou louca, livre, sou minha e hoje é o dia de viver pra mim.





Tenho que admitir: quanto mais se aproxima o reveillón, mais ansiosa e angustiada eu fico. Tantos anos vieram e se foram e tudo continuava igual. Será que em 2015 existe algo para me surpreender? Será que em um novo ano, dessa vez eu realmente serei uma nova pessoa? 

Que venha 2015, em nome de menos angústia e mais realizações.

Eu acordei e me vesti enquanto pensava: real ou ilusão?
Aquele sorriso malandro pairava na minha memória. É divertido conversar com ele e faz com que eu me sinta bem. É engraçado como o tempo passa rápido e, mesmo podendo falar sobre meu problemas, eles parecem não existir.
Enquanto escovava os dentes pensava na cara de malícia, nos olhos de maldade daquele guri. Penteando os cabelos, pensava se era o começo de uma grande amizade ou de um grande encantamento.
Eu me sinto em paz na companhia dele. Eu conto as horas para contar pra ele sobre aquele filme maneiro que eu assisti, ou sobre como me senti bem durante o dia. É uma pecinha de encaixe preenchendo um lugar vago aqui dentro. Dividindo espaço com meus sentimentos, meus pensamentos, minhas tristezas e minhas alegrias, com quem eu sou. Uma peça que não aperta, não soprepõe, apenas se encaixa.
Eu fico aqui pensando se ele estava confortável na poltrona do ônibus, se chegou bem, se está com fome, se o perfume ainda recende. Penso se ele pensa em mim.
Eu ainda não sei o nome disso que me liga a ele. Ainda não sei se é forte, se dura, se vale. Mas eu penso nisso com uma calma e com uma alegria, que talvez não importe ainda o que seja. Importa que me faz bem.
Eu quero me manter assim, e tentar fazer minha cara de séria enquanto meu subconsciente grita: "não morde essa boca, guri, que assim tu me deixa sem graça e me faz perder o restinho de juízo que ainda tenho."

Eu me sinto uma pessoa normal, ou talvez quase.
Eu me sinto uma nova pessoa, cheia de outros desejos e outras prioridades, posso sorrir novamente, e, acredite, eu tenho paz. Ainda me apetece um vazio e algumas crises raras, mas eu posso sentir o cheiro da tranquilidade, o cheiro mais suave e ainda assim o mais forte do mundo. Porque a força da tranquilidade move, me leva pra frente, me faz caminhar com calma e chegar inteira aonde quero chegar. A tranquilidade me faz levantar em dias em que normalmente eu me largaria à míngua.
Eu faço o que eu quero fazer, sem o velho hábito de competir ou agradar ou provar que sou boa o suficiente. Eu sou boa o suficiente para mim, isso basta. Eu me divirto com o que quero me divertir, e que seja um filme bobo ou uma reunião de velhos amigos, tudo contêm o mesmo valor. Hoje sei que não provo força me forçando a aceitar a hiprocrisia dos velhos bares e aparências falsas. Hoje sei que sou forte quando faço o que me faz bem.
Eu me sinto uma pessoa quase normal. E isso é um elogio que adoro me fazer, porque no fundo ser normal é muito chato!

Era sexta feira, e eu permanecia estática no sofá de uma sala que não era a minha, rodeada de amigos que não pareciam meus. Talvez não fossem. Eu tinha que me controlar e fingir que estava tudo bem. Tinha que conter as lágrimas enquanto aquela maldita queimação no estômago me torturava.
Eu tinha que fingir que tudo era natural, que nada mais me abalava, independente do quanto estava destruída por dentro ou do quanto meu último romance fracassado ainda mexia comigo. Tinha que fingir que não tinha estado no inferno no último ano. Eu queria uma maneira de fugir de tudo e quanto mais tentava, mais estava cercada por toda aquela dor e aquelas histórias cheias de angústia. Talvez ainda estivesse no inferno. Talvez.
Por mais longe que eu parecesse estar, doía. Todas as feridas ainda sangravam, e eu tinha que estampar aquele velho sorriso amarelo e fingir que tudo estava em paz.
O estômago ainda queimava, e quanto mais apertado me parecia o coração, mais sorria. Um sorriso sem cor, sem emoção, enquanto respondia mecanicamente à qualquer pergunta e parecia um pouco ausente à qualquer assunto, mas sorria, era o que importava. Sorrindo não haviam questionamentos.
Mas continuava tentando; eu voltava pra casa com o mesmo sorriso amarelo e dormia ainda com ele. Eu tentava esquecer de tudo que vivi. Talvez eu ainda conseguisse, só não sabia ainda.

Era claro como tentar calçar um sapato que não nos serve mais: a angústia;
Não encaixava, não fazia parte, tirava tudo do eixo. Machucava. Doía o calo antigo. Arrancava as cascas das feridas que começavam a cicatrizar. Mas que diabos aquele sapato ainda fazia no guarda-roupas?
Era claro como tirar um sapato que machuca: o alívio.
Eu coloquei com cuidado o sapato gasto no lixo. Os pés, livres, no chão. Sei que novamente os dedos iriam doer por um curto tempo, mas as cicatrizes me lembrariam que agora preciso encontrar algo do meu tamanho. Algo que não doa, que não sufoque, que não angustie.
A sola dos pés sentia o frio do piso, era incrível.
Acho que as vezes os pés - e o coração - precisam pisar no chão pra se libertar.