E agora eu apenas busco me distanciar o bastante para ver tudo como um grande pesadelo. Apagar uma cidade inteira, cheia de histórias e de pessoas e de sentimentos, como se nada tivesse sido real. É, eu sei que é loucura, mas não há mais nada que me prenda além dessas lembranças confusas e embaçadas. E, sabe, não faço questão de que elas sejam nítidas, pois tudo me doeu demais.
Deitada sob o cobertor, eu escuto o barulho da chuva e dos trovões, e sinto o cheiro bom de estar em casa. O cheiro do perfume cítrico do meu irmão misturado ao dos doces em cima do armário. A sinestesia do cheiro das cores da parede do meu quarto. Do gosto do beijo do vento que entra pela janela. O calor do som do violão vindo na sala.
O frio nos meus dedos, a paz.
Eu fecho os olhos e ainda vejo e sinto tanta coisa que aconteceu nesses últimos anos, mas eu me libertei, é tudo distante e sei que agora não pode mais me afetar. Não há saudade e aquela vida não cabe mais na minha vida.
Estou no vão entre o passado que já encerrei e o futuro que ainda nem comecei. Estou no presente, finalmente. Não, não há história e não há ninguém. Mas há uma folha em branco, sem rasuras, sem condenação, e eu posso seguir em frente sem precisar olhar para trás.O pesadelo acabou.



Era tudo estranho, confuso, uma história de filme que nunca acabava. Eu me sentia estranha. Alheia a tudo e ao mesmo tempo tão afetada. Uma vida que não era minha, amigos que não eram meus. Um ex que não era ex que nem sei o que era barrando minha entrada na vida social. Intrigas, falsidade. E eu? Nem sei de que lado estava. Havia algum lado para estar?
Era tudo tão imcompreensível. O que eu sentia, o que eu vivia, o que era real?
Eu vestia os meus sorrisos e as minhas palavras doces, e fingia que tudo estava bem. Eu engolia as segundas intenções como se elas não existissem, e o ódio como se ele nunca tivesse estado presente.
Eu estava sozinha. Assustada. Perdida. E saía desfilando a minha alegria e dando as mãos a gente que nem conhecia. Fingia conhecer, fingiam me conhecer, fingíamos nos amar.
Absorvia todas as provocações como um airbag, e sorria, inabalável. Sutilmente devolvia mostrando que eu estava bem.
Mas, sabe, por dentro ia tudo se destruindo, tudo caindo, tudo sendo corroído por essa avalanche de sentimentos. Eu ia ficando cada vez mais frágil e mais amedrontada. E mais e mais insegura.
Talvez estivesse apenas descobrindo que não tinha aprendido ainda a viver. Mas era tudo tão confuso; tudo tão solitário.
Talvez eu estivesse entrado numa guerra sem saber. E estava em cima do muro.
E estava sozinha.
E tudo só girava e girava e girava.

Eu percebi então que eu estava livre. Eu não estava livre de alguém ou de algo. Eu estava livre da pessoa que eu tinha me transformado. Estava livre dos julgamentos que acatei de pessoas que nada sabiam sobre o que se passava dentro de mim e dos preconceitos que eu mesma me impus.
Eu me sentei naquela cadeira e me despi de todos os meus medos. Eu joguei as minhas angústias na mesa e travei uma batalha com cada uma delas, que será longa, mas muito mais tranquila do que o que tenho passado as escondendo debaixo dos tapetes da minha alma.
Finalmente, eu senti que começava a estar em paz. Eu estou consciente que uma batalha é uma batalha, e que exige esforços, que compreende recaídas. Mas essa paz que hoje sinto é uma das recompensas da luta que entrei a favor de mim mesma. 
E eu me sinto cada vez mais perto da vitória. 
Obrigada, Senhor.


Eram muitos os dias, que iam se transformando em semanas, e quando eu estava distraída já eram meses desejando que eu não me lembrasse mais tão claramente dele. Desejando que ele se tornasse pra mim mais um borrão, mais uma mancha em branco. Eu não aguentava mais me lembrar, não suportava mais ter vontade de vê-lo apesar de tudo. Era uma tortura ver o sentimento me obrigar a ficar do lado dele mesmo repugnando tanto quem ele era.
Sim, eu desejei, e aconteceu. É claro que eu não contava com essa raiva doentia, mas aconteceu, e foi mais rápido do que imaginei. Vários fatos e várias pessoas me impulsionaram, e abrir os meus olhos para a realidade foi a coisa mais dolorida e mais benéfica que já fiz por mim mesma.
Ouça bem, ele conseguiu ser ainda pior do que tudo que eu já odiava nele! Como pude me envolver com alguém assim? Como pude ser tão cega a ponto de me manter apaixonada por uma ilusão durante tanto tempo? Toda essa informação caiu como uma bomba na imagem dele, e tudo virou o tão esperado borrão.
A única diferença é que agora ele é uma mancha amarronzada; uma mancha suja e com um leve odor desagradável, que ainda incomoda sabe?! Quem sabe um dia, quando esse ódio torturante passar, vire uma dessas manchinhas brancas que carrego na memória.
Eu não consigo mais visualizar a imagem daquele olhar, tudo que existe é uma leve lembrança embaçada e distante. Uma lembrança embaçada do vulto no meu colchão. Mas não, por mais que eu me esforce, não enxergo mais o sorriso, sequer sonho com ele. Nos pesadelos, ele é apenas um vilão sem rosto; no meu dia-a-dia, se converteu apenas no mal que me fez. É, não lembro da presença física. Não consigo me recordar do cheiro, do toque, do formato do queixo que em meus textos eu mencionava tanto. Não consigo fechar os olhos e enxergar o rosto dele, não sei mais qual era a textura dos cabelos, o som do riso, a expressão de prazer.
Eu não vou defender que ele não me afetou, não vou fazer isso apenas pra me mostrar forte. Ele me afetou sim, e bastante, e ainda afeta diariamente. Todo o mal que ele me fez me deixou traumas, acentuou meus problemas de auto estima, descontrolou a minha ansiedade que vinha sendo controlada pelo coquetel de remédios pesados que o médico me obrigou a tomar.
Mas dá pra acreditar que não tenho saudade? No exato momento em que me sentei naquela poltrona de ônibus, deixei tudo pra trás. O sentimento, o desejo, a saudade. Ficou tudo naquele quarto de ap que pretendo nunca mais pisar. Do momento em que entrei em casa até hoje nem por um segundo tive saudades dele. Nem por um milésimo de segundo eu senti falta dos beijos, dos abraços, das palavras, da presença, de absolutamente nada.
E só eu posso compreender a alegria de me libertar desse sentimento doentio. Só eu sei como tanto sofrimento pode ter me dado, ao mesmo tempo, tanto alívio.

Eu não vou negar que me apaixonei. Não vou negar que por um longo tempo eu amava ver aquele rosto e aquele sorriso torto. Eu não vou dizer que não me iludi com os momentos "mágicos".
Mas hoje eu posso ver tudo claramente, sem a nuvem da paixão. Posso enxergar todo o mal que ele me fez, todo o veneno que ele, lentamente, inoculou em mim. E pra ser sincera, sinto ânsias de vômito ao lembrar do rosto dele. O meu estômago é bem sensível, às vezes chego a acreditar que os sentimentos se concentram lá. Ele se retorce e me tortura, me enoja quando lembro dele. É horrível a maneira como me revira tudo por dentro enquanto as cenas insistem em, involuntariamente, ficar repassando na minha memória.
Tenho nojo do beijo, do cheiro, do suor. Nojo do olhar, das palavras, do toque. Eu tenho muito nojo da pessoa que ele é, porque ele sempre esteve podre por dentro e eu não percebi. Tenho nojo das coisas que permiti que ele me fizesse, como eu pude ser tão doce enquanto ele era tão cruel?
Paguei muito caro pela minha ingenuidade, vi a  vida cobrar caro pelo meu tempo perdido, pela bolha que vivi por tanto tempo.
Eu não vou negar que tem sido difícil; Esse misto de raiva e frustação tem me adoecido tanto. Mas também não nego que estou melhor agora do que por tanto tempo ao lado de gente sorrateira e egoísta.


Ora, menino, não seja tão ridículo. Não venha me dizer que nada aconteceu, não tente o mesmo truque de antes porque ele não funciona mais. Não repita o quanto você é bom e o quanto sou culpada por você não me amar. A questão não gira mais em torno disso. Quando eu reforço o quanto você é ruim, eu não falo do que não sentiu por mim. Falo do seu caráter. Da maneira ridícula como você mente sobre tudo, de como vive uma mentira. Do seu jeito sutil de manipular. Da sua mania frequente de agredir sutilmente com palavras quando se sente acuado. Eu te conheci o suficiente pra perceber a sua maneira crítica de olhar pra todo mundo, a sua falta de respeito com o próximo, principalmente com as mulheres. Eu vi você tratar as pessoas como lixo e não valorizar sua família e suas amizades. Te vi dar valor a coisas fúteis. Eu vi a sua falta de responsabilidade e a sua mania de superioridade. Eu falo da pessoa egoísta que você é.
Quando falo do que fez comigo talvez eu esteja mesmo incluindo as suas mentiras gritantes e suas traições. Mas também falo de como foi oportunista ao aproveitar da minha própria doença para me chantagear. De como insistiu pra que eu me apoiasse em você, sabendo de todas as atitudes que tinha que uma hora ou outra iriam agravar tudo o que eu estava passando. Falo da maneira como era grosso e cruel quando se sentia irritado, de como escolhia minhas confidências que mais me magoavam para me causar sofrimento. Eu falo do seu jeitinho de me fazer sentir culpada por erros que não eram meus, do seu jeito de me convencer o tempo todo que a minha vida era errada, que eu era errada, do quanto eu era ruim.
Então não venha com o seu joguinho de palavras, porque eles não vão mais funcionar comigo. Não tente fechar os olhos de quem já os abriu uma vez. Pode ficar aí, na sua bolha, se julgando muito íntegro. Fique com suas drogas e com sua droga de vida. Engana quem ainda acredita em você, que na vida é Deus quem cobra.

É que dá saudade. Dá saudade do sorriso sincero e do olhar encantado. Dá saudade daquele beijo que me tirava o fôlego, que só um cara apaixonado pode dar.
É que a falta de coisas simples faz um buraco muito grande na minha vida, um vazio muito grande em mim. Era o beijo de boa noite, o bom dia, o carinho gratuito de leve no rosto. Era o seu olhar único, o romantismo, o cuidado. Era o jeito de me tocar, o jeito de falar que tava com saudade, a satisfação de estar ao meu lado. Dá saudade de um gesto, de um convite, de um abraço apertado; dos seus dedos no violão satisfeitos em tocar pra mim. E angustia ver ao meu lado um cara que não conheço mais. Um cara que não me conhece mais. Um cara que não me ama mais. Angustia fingir ter alguém que não tenho e te ver se esforçar pra fazer o que devia ser natural. É que humilha te ver se esforçar pra ficar uma noite do meu lado. 
Dá saudade dos momentos simples, das noites sozinhos, da bolha brilhante que eu vivia quando estávamos a sós.
É que dá saudade e essa saudade dói tanto. 



"(...)Estar lá, e ver ele voltar... Não era mais o mesmo, mas estava em seu lugar." (

Eu já vi esse filme antes. Chegou o momento. A hora de me calar. O momento de parar de tentar, inutilmente, buscar apoio de quem não tem mais nada a oferecer. 
É difícil parar de dividir suas angústias com quem sempre as ouviu, com quem sempre se importou com elas. Mas é torturante continuar buscando e dando com a cara na porta. Buscando amor e vendo a indiferença nos olhos, a dureza nas palavras, a falta do cuidado.
É a hora de parar de se lamentar com quem não se importa mais com seus lamentos, quem não pode mais saná-los. 
Se não for assim, posso enlouquecer, eu sei bem. Anos e anos já o fizeram antes.
O fim do amor é sempre triste. Mas o fim do amor de quem ainda amamos é uma dor insuportável.
Eu jurei que não passaria novamente por isso. Jurei virar as costas antes que eu mesma me agredisse tanto, pois é inútil bater na porta se a casa está vazia. Mas eu estou aqui. Por isso agora é a hora dolorosa de me recolher e parar de lutar por uma guerra perdida.
Já estou desgastada por buscar afeto e receber indiferença. Estou cansada de tentar e tentar e me magoar em todas as tentativas.
Agora deixo meus lamentos me corroerem por dentro, as mágoas sufocarem. É assim que tem que ser. É assim que tenho que ser. Forte. É a hora de aguentar tudo sozinha. As lágrimas voltam a ser só minhas. 
O curso do rio segue como tem que ser. Só não vou mais me calejar tentando amontoar pedras para mudá-lo.