Partes de mim


Era começo de 2007, talvez já não fosse verão, nunca fui ligada a essa coisa de estações. Só sei que quando chovia podiam me identificar nos corredores pelo meu casaco rosa. Eu nunca havia faltado. Aliás, nunca havia me atrasado. Sempre pontual, estava religiosamente presente, choramingava quando não via aquele vulto chegando de cabeça baixa, com o caderno de um ano passado nas mãos. Todos já acomodados e eu sempre reparava na maneira que ele arrastava a mesa e sentava desalinhado na cadeira, atraindo olhar repreensivo da professora. Eu nunca me ausentava antes de ver o vulto passando sorrateiro pelo portão e sumindo na curva. Era isso que ele era. Um vulto. Um incógnita.
Havia uma companhia que estava permanentemente ao meu lado, ela deveria ser protagonista dessa história, mas não é. Foi ela que, apesar da minha paixão descontrolada por ele, protagonizou comigo a maioria das vivências desse período.

Naquele dia eu acordei tarde e me pus a escrever. Fui traçando rápido a volta das letras receando que me atrasasse. Mas eram tantas letras, tantas frases, tantas margens... Aquele trabalho escolar demorou uma eternidade. Pendurei o fichário nos ombros e corri, dei de cara com o portão fechado, e tinha que esperar pelo próximo horário. Cabisbaixa me virei pra procurar um banco, então ouvi; Ouvi uma risada muito alta e olhei pelo portão. Ele estava lá. O amigo dele gargalhava, e ele sorria -como poucas vezes o vi sorrir-, e em minha direção. O amigo batia palmas e ele olhava tudo com aquele sorriso misterioso que nunca mais vi ninguém fazer. Foi o bastante pra me desesperar, fiquei desorientada e com o coração aos pulos, precisava saber porque eu era o centro das atenções naquele momento. Eu me senti ligeiramente radiante, mal pude esperar pra poder adentrar o pátio e me aproximar.

Mas logo em seguida tudo morreu. O sorriso, as palmas, o entusiasmo. Não foi difícil descobrir o motivo daquele movimento todo, e eu fiquei paralisada. Uma aposta. Eu não me importaria de ser o prêmio daquela aposta ridícula, eu o queria. Mas ele se arrependeu quando me viu aparecer, e foi então uma das maiores rejeições da minha vida. Ele apostou um simples beijo, e foi capaz de quebrar a honra da palavra pra evitar esse contato meu.
Talvez pareça um drama exagerado, mas aos 14 anos esse é o tipo de situação que machuca de verdade. Qual era o meu problema?
Eu poderia ter me isolado, poderia tê-lo odiado, mas olha só como eu fui irracional: resolvi me aproximar. Prometi nomear aquele incógnita, resolver aquela equação, derrubar o mistério. E assim busquei uma rejeição ainda maior. Eu fui capaz de cavar uma espécie de amizade entre mim e ele, apesar do grande abismo que nos separava, e em contraste com as piores humilhações, eu tive as maiores felicidades e isso compensava tudo.
Até que naquela noite quente eu me preparei delicadamente, cortei o meu cabelo, pintei as minhas unhas, passei horas em frente ao espelho buscando a aparência perfeita. E decidi forçar uma situação, colocá-lo contra a parede; Não suficientemente mobilizada com a primeira rejeição, eu levei-o comigo e avancei num beijo. Fiquei no vácuo. Caí do banco. Desci das nuvens. Corri cega de ódio. Dancei desesperada e beijei um estranho no final da noite. Chorei até amanhecer e ainda assim me sentia sufocada. 
Eu poderia ter escolhido nunca mais tomar iniciativa alguma. Mas não foi assim. A frustração me levou além, a minha teimosia me fez continuar em frente, mesmo que ele tivesse que ficar pra trás, até provar que eu podia ser melhor.
E saibam que é por isso que ele, inconscientemente, é responsável por grande parte do que sou hoje. E é por isso, meus amigos, que apesar de tudo, ele nunca vai sair das minhas memórias, mesmo que já tenha saído há tempos do meu coração.

4 comentários:

  1. "O Centro das atenções" ele querendo ou não, você foi muitas vezes o alvo do mundo dele. Talvez ele não quisesse admitir, se deixar levar por ser quem pensava ser. Mas na vida dele, você foi bem mais do que ele imagina. E essa história, e aquela história, vai viver para sempre dentro de nós. Como você disse, o amor morreu á tempos, mas as memórias vão fazer parte para sempre.

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  2. Pode até ser verdade, porque de certa forma eu também fiz parte da vida dele. Só é triste que ele nem sequer saiba de muitas histórias da minha vida que envolvem ele; mas, de alguma maneira, tudo valeu a pena.

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  3. Tambem tenho uma pessoa assim. Embora diferentemente de voce, ele saiba de tudo que me causou, e eu tenha me vingado de uma forma bela e publica tres anos mais tarde. mas agradeça por ter um coraçao bom.

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  4. Eu agradeço sim, e agradeço por não ter restado ódio, por ter o coração em paz. Por saber que, apesar de ter sofrido muito, foi isso que me impulsionou, e que apesar de tudo ele nunca me enganou, eu me iludi sozinha, e foi isso que me fez aprender a lição. Cuidado prima, que o ódio e a vingança são armas poderosas porém muito destrutivas.

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